segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Maternidade na Ficção - A filha perdida (Elena Ferrante) e Uma Duas (Eliane Brum)

A maternidade não é sempre linda! É cheia de insegurança, confusões e crises! É o amor que nos salva desses venenos. Só ele consegue cuidar dessas feridas e quem sabe, curá-las algum dia.  

ISBN-13: 9788551000328
ISBN-10: 8551000322
Ano: 2016 / Páginas: 176
Idioma: português 
Editora: Intrínseca
(Skoob)

“As coisas mais difíceis de falar são as que nós mesmos não conseguimos entender.”

Leda é uma professora universitária de literatura inglesa, tem 47 anos e é mãe de duas filhas já adultas que decidem morar com o pai no Canadá. 
Com a chegada das férias de julho, ela decide tirar férias e curtir essa nova fase. Longe da responsabilidade da maternidade, Leda nos apresenta o novo cenário de sua vida, sua nova rotina sem o peso da responsabilidade de satisfazer os desejos, caprichos e necessidades das filhas. 
Narrado em primeira pessoa, nosso primeiro contato com a personagem se dá quando ela descreve como sofreu um acidente de carro após sentir uma queimação na lateral do corpo. No hospital, dizem que ela tem uma lesão inexplicável, mas em segredo, ela sabe exatamente do que se trata. 
E é por isso que conhecemos a história de Leda! 
Através de uma retrospectiva mental que desemboca no motivo que causou essa lesão, ela nos conta como decidiu tirar essas férias que inicialmente começam como uma celebração de sua mais nova liberdade. Um momento para curtir a solidão, livre da culpa que acomete as mães. 
Leda se sente radiante! Sente que não tem mais nada que a impeça de ser ela mesma, que rejuvenesceu e que vive a vida que merece viver! Mas logo nas primeiras páginas, entendemos que nem tudo o que parece estar resolvido realmente está. 

“Depois senti fome e voltei à bandeja de frutas. Descobri que, por baixo da bela aparência, figos, peras, ameixas, pêssegos e uvas estavam velhos ou podres. Peguei uma faca, retirei grandes partes escuras, mas o cheiro e o sabor me causaram nojo, e joguei quase tudo na lata de lixo”.

Quando chega à praia, uma família Napolitana chama a sua atenção e Leda começa a fazer associações com sua própria família na infância. Filha de uma mãe nervosa e infeliz, com parentes escandalosos e exagerados, tudo que essa mulher quis foi ser diferente de suas raízes e passou toda a sua vida fugindo disso.

"As línguas, para mim, têm um veneno secreto que de vez em quando aflora e para o qual não há antídoto. Lembro-me do dialeto na boca de minha mãe quando perdia a cadência meiga e gritava conosco, intoxicada pela infelicidade: não aguento mais vocês, não aguento mais. Ordens, gritos, insultos, um prolongamento da vida nas suas palavras, como um nervo lesionado que, assim que é tocado, arranca junto com a dor qualquer compostura. Em uma, duas, três ocasiões ameaçou a nós, suas filhas, dizendo que iria embora, vocês vão acordar de manhã e não vão mais me encontrar. Eu acordava todos os dias tremendo de medo. Na verdade, ela sempre estava lá; nas palavras, vivia sumindo de casa. "

Uma jovem mãe e uma filha chamam sua atenção. E a partir daí a história vai se tornando mais perturbadora. 
Leda sente inveja, ciúmes e sentimentos que alternam entre empatia e repulsa por aquela relação e em uma atitude impensada e extremamente bizarra ela estabelece um vínculo com aquela família que tanto a perturba. 
Aos poucos, ela vai contanto suas memórias e em dado momento descobrimos que em uma fase de desespero para ser alguém que não fosse mãe, Leda largou as duas filhas pequenas e retornou 3 anos depois. Era um assunto não dito com as meninas, agora adultas, que preferiam não reviver a história. E aí a honestidade vai sendo brutal!
Leda nos apresenta o cenário de uma jovem mãe que se vê anulada pelo ofício nobre tão aclamado pela sociedade. Tornar-se mãe talvez tenha sido apenas uma forma de provar para si mesma que podia ser melhor que a sua. Ela narra a rivalidade que existe em sua relação com as filhas, a mistura de emoções ao vê-las crescer e se tornarem mulheres e descobrirem amores, amizades e seu próprio mundo em que ela não pode protege-las, despertando sentimentos tão antagônicos! 

"Desde o início da adolescência das minhas filhas, fui tomada pela obsessão de compará-las com garotas da mesma idade, amigas íntimas e colegas de escola que eram consideradas bonitas e faziam sucesso. De um modo confuso, eu as considerava rivais das duas garotas, como se a autoconfiança, a sedução, a graça e a inteligência excepcionais delas tirassem algo das minhas filhas e, de alguma forma obscura, de mim. Eu me controlava, falava com gentileza, mas, ao mesmo tempo, tendia a provar para mim mesma, silenciosamente, que todas eram menos bonitas que minhas filhas ou que, se eram bonitas, eram antipáticas, vazias, e eu listava os caprichos, as tolices, os defeitos provisórios daqueles corpos em crescimento. Às vezes, ao ver Bianca ou Marta sofrendo porque se sentiam ofuscadas, eu não resistia e chegava a intervir de maneira excessiva contra aquelas amigas extrovertidas demais, atraentes demais, encantadoras demais."

O livro nos causa certo desconforto, principalmente para quem é mãe e tenta driblar todos aqueles sentimentos todos os dias. A narrativa direta de Elena Ferrante é um manifesto contra as cobranças que permeiam a vida feminina. Nossas angústias criadas por uma sociedade que nos enxerga, às vezes como santas, outras como putas e se vê na obrigação de ditar regras que usam princípios biológicos para sustentar uma dominação e padrões que transformam todas as mulheres em uma única raça! 
Elena Ferrante nos mostra que somos mulheres, mas não somos iguais. Dividimos angústias, mas não temos os mesmos sonhos. 
A maternidade não nos enobrece, ela é traumática dos dois lados! Mães e filhos estão se descobrindo, se conhecendo e não deixam de ter seus próprios sonhos e fantasias por isso. Toda essa culpa que nos acompanha foi algo desenvolvido pela expectativa de se comparar o ofício da maternidade com algo que anula completamente o ser humano. Depois de mães, não podemos mais ter vontades, sonhos e prazeres que não sejam aqueles que envolvem nossos filhos e isso vem criando relações tóxicas em todas as gerações. Mães culpadas e frustradas que criam filhos culpados e frustrados para continuarem esse ciclo vicioso que se sustenta por meios cruéis. 
A maternidade não é sempre linda! É cheia de insegurança, confusões e crises! É o amor que nos salva desses venenos. Só ele consegue cuidar dessas feridas e quem sabe, curá-las algum dia.  

"Senti-me como uma gota que escorrega ao longo de uma folha depois da chuva, impelida por um movimento claramente inevitável."
Sobre a autora
Elena Ferrante se recusa a divulgar fotografias e a falar de sua vida pessoal. Acredita-se que tenha nascido na região de Nápoles e que seja mãe. A autora publicou diversos romances, entre eles Dias de Abandono.
Em 2012, Europa Editions começou a publicação de traduções para o inglês de "Neapolitan Novels" de Ferrante, uma série sobre duas meninas perceptivas e inteligentes de Nápoles que tentam criar vidas para si mesmas dentro de uma cultura violenta e destrutiva.
Os críticos elogiaram o seu "poder devastador como romancista" e por um estilo que é "agradavelmente rigoroso e fortemente franca."
Ferrante sustenta que "os livros, uma vez que eles são escritos, não precisam de seus autores."
(Skoob)


 ISBN-13: 9788580441239
ISBN-10: 8580441234
Ano: 2011 / Páginas: 176
Idioma: português 
Editora: LeYa Brasil
(Skoob)

"como a vida pode absorver tanto horror e seguir adiante?"

E o contraponto disso tudo é o livro Uma Duas de Eliane Brum. A jornalista brasileira lançou seu primeiro romance em 2011 e a obra foi muito bem vista pela crítica. Não é para menos, com uma narrativa confusa e muitas vezes nauseante, a autora não poupa esforços em incomodar o leitor, nos apresentando, ora em primeira pessoa, ora em terceira pessoa, um fluxo de consciência cruel de uma filha que possui um passado extremamente problemático com sua mãe. 
Após um episódio perturbador que acontece logo nas primeiras páginas, Laura larga tudo e vai cuidar da mãe que apresenta um quadro depressivo grave.
Na tentativa de transformar sua dor em palavras, Laura começa a escrever um livro sobre sua história, e em certo momento, ao ler os escritos de sua filha, Maria Lúcia começa a nos apresentar a sua versão da história e quando achamos que nada mais pode piorar, eis que a história se transforma em uma coisa fisicamente insustentável. Apesar das 176 páginas, a leitura é lenta! E por causa dos desconfortos gerados e da narrativa confusa, acabamos por tomar um certa repulsa pelo livro. 

"Finalmente o grito preso ali se solta. E ela sente que nunca mais o grito cessará, que aquele grito é para sempre, é um grito para toda a vida e para além da vida. Porque agora ela alcança a inteireza do horror. E gritos são coisas que não viram palavras, palavras que não podem ser ditas. Não há como escapar da carne da mãe. O útero é para sempre."

Diferentemente do livro de Elena Ferrante, a maternidade aqui não foi estabelecida pela pressão da sociedade, ao contrário, ela ocorreu exatamente pelo distanciamento da sociedade e por uma mulher que, além de ser vítima de abuso, foi criada completamente afastada do contato social e não entendia nada sobre a vida, sobre as relações e sobre o amor. Mesmo assim, o livro fala de traumas, dores e abusos através de dois pontos de vista e dos destinos cortantes de duas mulheres que precisam aprender como amar. Não é uma leitura bonita, muito menos fácil e nem possui verossimilhança com relações entre mãe e filhas que conhecemos no dia a dia. Trata-se de uma lente de aumento, uma situação extrema para apontar para o impacto que a infância tem em nossas vidas e no desenvolvimento da nossa personalidade. 

"Eu corto corto corto e ainda não sei que existo. Continuo sem corpo. E ela lá fora, com medo que eu vá embora, fingindo desconhecer que não posso partir. Nunca pude. Porque arrasto comigo o corpo dela, que me engolfa e engole. Mas divago."

A ideia de falar sobre esses dois livros, foi para falarmos mais uma vez do poder da literatura em nos apresentar mundos tão distintos dos nossos e nos fazer refletir acerca do respeito que devemos ter com todo o ser humano que carrega dores e histórias que não conhecemos. Cada um carrega um mundo dentro de si e ainda bem que a literatura existe para nos dizer o que a realidade não consegue!

"Tinham me contado que os escritores eram uma espécie de deuses. Eles criavam um mundo em que podiam viver e escapavam deste pela porta dos fundos. Me preparei a vida inteira para ser deus. E só o que faço agora é desinventar a mim mesma. Acho que é isso. A realidade é uma ficção. E ao escrever eu vou quebrando essa criatura esculpida com amor e desespero. É o contrário. É preciso destruir a forma humana que está ali para alcançar a pedra."

Sobre a Autora:
Elaine Brum
Jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de um romance - Uma Duas (LeYa) - e de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007), O Olho da Rua (Globo) e Dignidade! (Leya). E codiretora de dois documentários: Uma História Severina e Gretchen Filme Estrada.
(Skoob)

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